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O milagre do sorinho e outros milagres

A doutora Zilda Arns fez tudo ao contrário de como costumam ser feitos os programas de políticas públicas no Brasil. Não chamou o marqueteiro, como providência inaugural dos trabalhos. Não engendrou uma generosa burocracia, capaz de propiciar bons e agradáveis empregos. Não ofereceu contratos milionários aos prestadores de serviços. Sobretudo, não anunciou o programa e, com o simples anúncio, deu a coisa por feita e resolvida. Milagre dos milagres, Zilda Arns, que morreu no terremoto da Haiti, aos 75 anos, realmente fez. Se o Brasil teve uma redução significativa dos níveis de mortalidade e desnutrição infantil, nas últimas décadas, isso se deve em primeiro lugar a Pastoral da Criança, criada e administrada por ela, com apoio da igreja católica e aos exemplos que semeou.

O Índice de mortalidade infantil andava pelos 82,8 mortos por 1000 nascidos vivos, em 1982, quando Zilda Arns foi convocada pelo irmão, o cardeal Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, a pôr sua experiência de médica pediatra e sanitarista a serviço de um programa de combate ao problema. Hoje está em 23,3 por 1000. Nas áreas com atuação direta da Pastoral da Criança são 42000 comunidades pobres, espalhadas por 4000 municípios brasileiros, está em 13 por 1000. O que mais espanta na obra de Zilda, é o contraste entre a eficácia dos resultados e a simplicidade dos métodos. Nada de grandiosos aparatos, nada de inconvencionices.  A partir da gestão do hoje governador José Serra no ministério da saúde, ela passou a contar com forte apoio governamental. Mas suas ferramentas básicas continuaram as mesmas : O Sorinho e a multimistura.
O soro caseiro feito de água , açúcar e sal foi o grande segredo do combate à desidratação, por muito tempo a maior causa de mortalidade infantil no Brasil. A multimistura feita de casca de ovo, arroz, milho, semente de abóbora e outros ingredientes singelos foi, e continua sendo a arma contra a desnutrição. Zilda Arns era contra a cesta básica. Achava-a humilhante para quem recebia, e de presença incerta. Optou por ensinar como proporcionar uma boa dieta com recursos escassos.
A multiplicação da boa vontade : A ordem era ensinar com que os que aprendiam passassem também a ensinar. A pastoral da criança conta hoje com 260.000 voluntários.
O trabalho e a persistência : Se fosse só ensinar a tomar o sorinho e a multimistura e ir embora, seria repetir outro padrão das políticas públicas à brasileira. Cabe ao voluntário fazer uma visita por mês às famílias assistidas. Um instrumento imprescindível nessas ocasiões é a balança, para medir a evolução da criança.
A escora da índole feminina : Noventa e dois por cento do voluntariado da Pastoral da Criança é constituído por mulheres. Uma tarefa dessas é séria demais para ser deixada por conta dos homens. A mulher é muito mais confiável quando se mexe com assunto situado nos extremos da existência como são os cuidados com o nascimento e a morte, a saúde e a doença.
Zilda Arns conduziu-se por uma estratégia baseada na sabedoria antiga e na vontade de fazer nada mais do que isso. É paradoxal dizer isso de uma pessoa tão religiosa, mas não houve milagres na sua ação. A menos que se considere um milagre a presença dessa coisa chamada amor como motor, tanto dela como das pessoas em que ela inoculava o mesmo vírus. Vai ver; ela diria isso. Vai ver ,isso foi importante. Mesmo.
Zilda Arns morreu em circunstâncias  do tipo que nunca se esquece. Mas também, em circunstâncias que lhe coroam a vida. Estava no Haiti para, em contato com religiosos locais, propagar a metodologia da Pastoral da Criança. Morreu em combate.
 
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Este texto é uma reprodução da matéria escrita por Roberto Pompeu de Toledo na revista VEJA, edição Janeiro/2010.
Tomamos a liberdade de reproduzi-la por tratar-se, a nosso ver, de matéria de extrema relevância. Tema de amor e caridade, bondade e doação. Tema digno dos dignos. Tema de exemplo a ser seguido. Tema de orgulho de ser brasileiro e tema principalmente de esperança.